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Mostrando postagens de 2018

dia 16

Um pescoço não deveria dobrar desse jeito. É angular por natureza, noventa graus com os ombros, mas não noventa graus consigo mesmo. Isso é angular demais. Mesmo o apreço do universo por padrões e simetrias tem um limite. Aos seus pés estão papéis pequenos, retangulares, com imagens em preto e vermelho. É um jogo de cartas, amassadas e velhas, e é assim que sei que ele é humano. Humanos são os únicos que usam papel para coisas tão fúteis desse lado da galáxia. Da forma como estão espalhadas, parecem ter sido jogadas de propósito, com descaso. Nenhum desses detalhes é a parte mais estranha. O que chama a minha atenção de cara, que faz meus olhos saltarem, é o que está no colo dele. Deve ter sido depositado lá, porque não é uma relíquia humana, mas na verdade não me remete a nenhuma cultura que eu já tenha estudado. Consigo identificar que é uma coroa, mas é como nenhuma que eu vi em minha carreira de arqueóloga e em meus anos frequentando museus. Não tem joias ou adornos de qualq

trapaça

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Inktober é um desafio mundial criado em 2009 que acontece anualmente no mês de Outubro. É, essencialmente, um projeto para que artistas coloquem à prova sua criatividade, produzam regularmente e libertem-se da necessidade de perfeição que assombra a tantos.  As regras são simples: baseado em uma lista de prompts (algo como propostas), o artista deve fazer um desenho a caneta em todos os dias de Outubro e postar o desenho finalizado com a hashtag inktober. Em alguns aspectos, parece ok. E nos primeiros três dias, é bastante ok - especialmente porque a maior parte das pessoas faz a sua lista ou encontra listas para seguir antes do início do mês, então é comum que já tenham planejado com antecedência. As dificuldades crescem, porém: o tempo fica apertado, o cansaço aumenta, as ideias escasseiam, o resultado não sai como você esperava. Finalizar um desenho por dia torna-se um verdadeiro desafio. Muitas pessoas desistem. Mas eu não sou uma artista que desenha. O NaNoWriMo

transporte público

Se é para ser técnica, eu cheguei primeiro. Mas os bancos do ponto encheram em questão de minutos, e quando ela chegou o único lugar vago era ao meu lado. Eu tinha esperança de que aquele lugar ficasse vazio, para poder continuar virada para ele (apoiar os pés, melhor visão do ônibus chegando, sol nas costas), mas quando ela sentou, só consegui me preocupar com estar tossindo. Ninguém quer sentar perto de alguém tossindo. E eu não quero passar minha gripe-sinusite-doença pra ninguém. Pelo menos o ônibus chegou rápido. Foi ela que sinalizou para ele parar, então ela também foi uma das primeiras pessoas a entrar. Eu fui uma das últimas, porque tenho essa mania de deixar todo mundo passar na minha frente. Quando finalmente entrei, vi muito menos bancos vagos do que esperava. Dei um passo para frente, pensei em ser jogada de um lado para o outro enquanto fazia o longo trajeto até uma das portas, entrei em pânico e sentei na cadeira logo ao meu lado. Talvez ela tenha pensado algo pareci

um sonho de semana passada

O café fica dentro de um bairro, o que não é funcional de maneira alguma. Se eu fosse fazer um café, tentaria conseguir uma localização no centro, mesmo que fosse em uma das ruas laterais em um canto menos frenético. Pelo menos ia ter movimento, ia ter gente pra tropeçar por lá e pensar, ei, bem que eu podia parar e tomar um cafezinho. É assim que comércio funciona, eu acho. Você se coloca na frente das pessoas e faz de tudo para que elas olhem para você. Acho que a grande diferença desse lugar para os outros é exatamente essa. Ele não é para ser visto de forma leviana. Só quem sabe é o público especializado, quem já foi iniciado. Não é o tipo de lugar que se encontra por acaso, "descobri um restaurante ótimo outro dia". Tem que saber exatamente para onde está indo. Se não fosse para ser assim, não teria um glamour escondendo. O que é mais uma coisa que não entendo direito. Do que adianta toda a estrutura e toda a comida, toda a produção frenética de doces, parece que el

hoje sofri uma decepção

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Uma ideia é muito mais apaixonante do que uma pessoa. Tanto que é comum nos apaixonarmos antes pela ideia de uma pessoa do que pela pessoa em si.   Em Memórias póstumas de Brás Cubas , Brás diz logo no primeiro capítulo que não morreu de pneumonia, mas sim de uma ideia. Eu li esse livro pela primeira vez no ensino médio. Não consegui estabelecer identificação. Agora sei como uma ideia pode te absorver. Mas sabe, não tenho certeza de que é a ideia que te mata nem de que é a ideia que faz com que você se apaixone. Eu acho que o que faz você se apaixonar é a esperança, e o que te mata é a expectativa (e isso não funciona apenas para as ideias). Uma ideia é pior do que uma pessoa. A ideia quebra seu coração de forma desinteressada, seja de uma vez só ou aos poucos, enquanto você tenta se convencer de que consegue colar os pedaços necessários para aquilo funcionar. A ideia mal estruturada vai se despedaçando entre os seus dedos como um bolinho de areia - escorrendo para o chão, imp

Semana porco-espinho

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Disclaimer: porcos-espinhos são bonitinhos e herbívoros e quietos e não fazem mal a ninguém a não ser que sejam atacados. Esse post não pretende criticar ou fazer um discurso de ódio ou incentivar violência contra esses pequenos animais. Uma semana porco-espinho é afiada e difícil de manusear. Você entra nela esperando que fique tudo bem, pensando que ela é inofensiva, mas ela explode as suas expectativas no momento em que a coloca nas mãos. É como a lógica do cachorro ao ver um porco-espinho: é pequeno, é rápido, é interessante, tem um cheiro legal. A reação é querer pegar. As consequências são dolorosas. Na semana porco-espinho, nada acontece como o esperado. Você tinha planos e intenções e propósitos, todos jogados pelos ares no momento em que a semana desponta. Tudo precisa ser redesenhado, os compromissos perdidos e remarcados ou compensados na semana seguinte — uma semana que, espera-se, seja diferente dessa . Uma semana que não pareça tão determinada a te contrariar. A

20 (vinte) anos

Não sei, acho que precisa de muito esforço — ou de esforço nenhum — para criar uma criança que não fica animada com o próprio aniversário. Mesmo porque, lá pelos primeiros cinco anos, a data é mais significativa para os pais do que para os aniversariantes. A partir do momento em que a criança começa a compreender o conceito e que tudo aquilo é por ela e para ela, é preciso uma personalidade bem forte para não querer nada daquilo. Crianças costumam gostar de estar no foco de tudo, então automaticamente o dia do aniversário é o melhor dia do mundo. Esse é mais ou menos o padrão para crianças. Quando as crianças crescem, as coisas ficam um pouco diferentes. Dá para separar os adultos em mais ou menos quatro categorias: Tem gente que é a eterna criança, p ara quem aquela realmente é a data mais importante do ano. Conheço pessoas que anunciam a proximidade do aniversário com meses de antecedência, que montam comemorações fragmentadas em diversos eventos e que chegam a dura

síndrome de Hannah Montana

Aparentemente, blogs voltaram à moda. Só que blogs no Wix, uma plataforma mais interativa e bonita (com todo o respeito) que o Blogger. A graça do Wix, pelo visto, é que nele você realmente monta o site e tem uma url própria e tudo. No Blogger, você dá o seu melhor, e o seu melhor costuma não ser o suficiente: todos os blogs feitos nele são iguais, no máximo com imagens de fundo diferentes. Era pra esse blog ser o lugar onde eu ia dar meu melhor. Aquela coisa que eu ia passar o link para as pessoas sem medo ou hesitação, orgulhosa do que estava postando, diferentemente do blog anterior, e, sei lá, da conta no site de fanfic. Ledo engano. Eu nunca gostei de compartilhar coisas que eu faço. Comecei a fazer aulas de violão em 2013; foi preciso muita insistência para me convencer a tocar na frente de alguns amigos em 2015, e fiquei transtornada quando vi que tinham gravado e colocado no snapchat. Acabei atingindo um ponto no qual não me importo em tocar para pequenos grupos de pessoas

alguém me ajude

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Eu detesto listas. Listas me lembram de obrigações, e não sou a maior fã delas. Pior: listas me cobram, ficam gritando no meu ouvido e dizendo que eu sou inútil e incompetente, olha tudo que você ainda não fez.Talvez por isso eu nunca tenha me dado bem com agendas. Minha primeira experiência positiva com uma foi no semestre passado. Eu detesto listas. Elas me irritam profundamente. Parecem que estão lá para debochar de mim, da minha improdutividade. Eu odeio listas. Elas me fazem trabalhar. Listas me enchem do fogo de mil sóis e da quantidade de raiva necessária para me tirar do meu estado de preguiça e procrastinação e começar a fazer as coisas. Quanto mais longa a lista, melhor. Quanto mais quebradas em pequenos pedaços as atividades que preciso cumprir, melhor. Cada item que risco me enche de satisfação e me motiva a continuar, para eliminar o máximo de linhas possíveis. Listas, quando em estado de constante alteração, fazem com que eu sinta que estou fazendo cois